domingo, 16 de outubro de 2022

Bruno Latour


 

 

Morreu, aos 75 anos, Bruno Latour. Ele foi, dentre os autores que escreveram sobre ciência e tecnologia nos últimos tempos, sem dúvida o mais polêmico, e talvez mesmo o mais importante e influente. Com formação em filosofia, descendente de uma família de vinicultores da França, Latour logo mudou de trajetória, inclinando-se para a antropologia e a sociologia das ciências. No final da década de 1970, ele fez um estágio de dois anos num laboratório de bioquímica nos Estados Unidos, e desenvolveu uma nova metodologia que seria fundamental para o campo dos estudos sobre ciências: considerar os cientistas que trabalham em um laboratório como membros de uma determinada "tribo" e estudar seus costumes e práticas com as mesmas ferramentas da antropologia, especialmente a etnografia; além disso, analisar tanto os fatores internos como os externos (sociais, políticos etc.) que influenciam e são influenciados pela ciência. O livro decorrente dessa experiência, Vida de laboratório, escrito em conjunto com Steve Woolgar, publicado em 1979, é até hoje um clássico do campo e deu origem a todo um subcampo chamado de "histórias de laboratório".

Na década de 1980, Latour lançou outras obras fundamentais, tratando das controvérsias da época de Pasteur e escrevendo uma introdução aos estudos sobre ciência, Ciência em ação, que se tornou outro clássico do campo. Ao mesmo tempo, seu estilo iconoclasta e polêmico, com críticas diretas e agressivas a muitas figuras importantes do campo, como Canguilhem, Kuhn, Bachelard, e a pensadores anteriores, como Descartes, Durkheim e Kant, levou a que o próprio Latour fosse constantemente criticado, inclusive por antigos colegas do campo dos estudos sobre ciências. O seu desenvolvimento (juntamente com Michel Callon, seu grande amigo, e John Law) da chamada teoria do ator-rede ainda atraiu mais críticas a ele, pois a teoria rompe com a separação entre ciência e natureza e entre atores humanos e não-humanos, separação básica para quase todas as teorias da antropologia e da sociologia atuais (uma destas grandes críticas foi feita por David Bloor, um dos principais nomes da sociologia das ciências da década de 1970, e que escreveu um texto com o título de "Anti-Latour"). Um outro detalhe é que, bem dentro de uma tradição polêmica francesa, Latour respondia a todas essas críticas com bastante virulência.

 No final da década de 1990, Latour foi escolhido como um dos principais alvos da chamada "guerra das ciências", na qual um grupo de físicos escreveu artigos denunciando vários autores que tratavam de matemática e ciências em seus textos como "charlatães" e "impostores intelectuais". Latour foi colocado na mesma situação que autores como Lacan, Derrida e Julia Kristeva, por exemplo, o que fazia pouco sentido. Mesmo assim, ele respondeu duramente no prefácio de seu livro A esperança de Pandora, de 1999, onde partia, de uma maneira bastante irônica, da pergunta "se ele acreditava na verdade?" para expandir sua crítica à chamada modernidade como um todo, para ele caracterizada pela separação entre homem e natureza, corpo e mente, e defender uma nova sociologia que incorporasse a nautreza e os atores não-humanos, questões que ele já havia colocado em um livro de 1993, Nunca fomos modernos.

Ao longo da década de 2000, as publicações de Latour passaram a incorporar um outro elemento que considero muito interessante: as questões ecológicas e a crise climática. Ele reutilizou em vários de seus textos a expressão do planeta Terra como Gaia, criada pelo bioquímico inglês James Lovelock na década de 1970, além de utilizar outros termos para discutir essas questões, como a ideia de Antropoceno. Alguns viram nisso e em outros textos de Latour uma certa rendição diante da "guerra das ciências", com Latour passando a utilizar sem questionar elementos de ciências como a biologia e a meteorologia, embora eu ache essa uma crítica injusta a ele. Mas o mais marcante é que, em meio a tantas críticas, seu trabalho começou a obter grande reconhecimento também: em 2013, ele recebeu o Prêmio Holberg, na Noruega, o equivalente mais próximo do Prêmio Nobel para as humanidades; recebeu vários doutorados honoris causa e propostas para fazer leituras em várias universidades ao redor do mundo; e, por fim, em 2021, um ano antes de sua morte, recebeu o outro prêmio mais prestigioso para as humanidades, o Prêmio Kyoto, no Japão. Ao mesmo tempo, ele continuou produzindo livros e artigos, sempre incorporando alguma ideia nova ou diferente; seu último livro foi lançado em 2021, com o título de Onde estamos?, e trata do mundo pós-pandemia, que ele não viveu muito para ver. 

Considero que a morte dele não deve ser apenas lamentada, afinal ele conseguiu ter uma obra muito importante e influente e foi reconhecido em vida. E, agora, sua obra deixa de ser propriedade apenas de um autor e passa a contribuir para o conhecimento da humanidade, em um momento de grandes necessidades como o que estamos vivendo. Acho que não é exagero dizer que, após Thomas Kuhn, ele é o autor mais importante dos estudos sobre ciências no século XX (e XXI).

Gostaria de, a partir deste post, dar início a uma série de comentários mais detalhados sobre algumas das principais obras de Latour. Para começar, o clássico Laboratory Life, ainda hoje, mais de 40 anos após sua publicação, uma obra central do campo.


 P.S.: Não deixem de conferir o site www.brunolatour.fr, onde se encontram uma biografia, uma bibliografia, vários textos de seus artigos, além de várias imagens interessantes.

 

  

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