segunda-feira, 4 de abril de 2022

Heródoto e os inícios da história


 

 

Tenho voltado a ler um de meus autores favoritos, tanto por razões históricas como por outras que ficarão mais claras ao fim deste post: o grego Heródoto. Ele é considerado o primeiro historiador; embora, hoje em dia, se aceite que o mais correto é dizer que ele foi o primeiro autor conhecido que falou de história cuja obra sobreviveu. Culturas anteriores à Grécia, como o Egito e a Mesopotâmia, também produziram obras com um caráter histórico, ou seja, que falavam do passado, mas estas geralmente não estavam ligadas a um autor individual (FELDHERR; HARDY, 2011). Ao mesmo tempo, estas, desde o início, foram usadas pelos governantes como forma de legitimação (como os anais assírios). Embora se possa dizer que a obra de Heródoto cumpre um pouco esta função de legitimação da Grécia clássica em seu confronto contra a Pérsia, veremos que a questão é um pouco mais complexa e que talvez uma de suas maiores qualidades seja exatamente não se reduzir a este papel.

Por um lado, pode-se dizer que Heródoto foi o autor mais importante da historiografia, pois o próprio termo história, que é utilizado até hoje em todas as línguas indo-europeias, vem do título de sua obra, que pode ser traduzido como “pesquisas” ou “enquetes”. Então, em um sentido literal, Heródoto é realmente o “pai da História”, como Cícero escreveu no século I a.C. No entanto, o modelo de história que ele defendia era bem diferente daquele que acabou sendo praticado pela grande maioria dos historiadores que vieram depois dele, que se basearam muito mais em um outro historiador grego, Tucídides, uma geração mais jovem do que Heródoto, que estabeleceu os elementos centrais da historiografia até o século XX: o destaque para a história política, militar, diplomática e econômica, a concentração nos governantes, a busca e a crítica de documentos escritos, de preferência. Ao contrário, Heródoto, embora também estivesse narrando uma guerra, fazia inúmeras digressões sobre assuntos não relevantes diretamente para isso, dava preferência ao testemunho sobre o documento (quase tudo o que ele contava vinha sempre do que ouviu de alguma outra pessoa), mesmo quando esse testemunho parecia absurdo ou fantasioso, como no caso de lendas sobre formigas devoradoras de homens. Ele também se interessava por inúmeras outras questões que, no modelo de Tucídides, não seriam assuntos da história, como, por exemplo, os costumes sexuais de determinadas tribos ou os crocodilos do Egito; ele estaria mais próximo de um “contador de estórias” do que de um historiador, na visão atual (MOMIGLIANO, 2004). Por isso, o próprio Tucídides foi o primeiro a criticar Heródoto e apontar que ele também seria o “pai das mentiras”.

Até a primeira metade do século XX, a história concentrada nos “grandes homens”, nos reis, nas guerras, era dominante, o que não quer dizer que era o único estilo a ser escrito, mas era o que tinha maior visibilidade. Os franceses da Escola dos Annales lançaram uma crítica, a partir dos anos 1920, entre outras coisas, exatamente à essa história política e militar, baseada apenas nos supostos “acontecimentos” (histoire évenementielle, para usar o termo de Lucien Febvre) e em documentos escritos. Contra ela, reivindicaram uma espécie de “história total”, que tratasse de vários outros domínios, especialmente nos campos social e cultural, e que se interessasse por outras questões, além das guerras e da política. Como uma consequência lateral disso, pois nenhum dos historiadores do grupo dos Annales o citam diretamente, houve uma reabilitação de Heródoto, agora não mais o crédulo, ingênuo e “contador de estórias”, mas sim o Heródoto interessado em questões sociais e de costumes, que buscava fontes, sempre que possível, nas próprias culturas das quais falava, e, principalmente, o Heródoto que, ao contrário de muitos narradores de guerras, não tratava o adversário apenas como bárbaro que devia ser exterminado; o que também movia Heródoto, como ele diz em um dos primeiros parágrafos de sua obra, era tentar entender como o império persa surgiu, se tornou tão forte e uma ameaça a Grécia, e como, posteriormente, acabou derrotado, embora fosse muito mais poderoso militarmente.

Dessa maneira, a partir da segunda metade do século XX houve uma grande produção de obras sobre Heródoto, procurando aproximá-lo, do mesmo modo que ocorreu com a história em geral, da antropologia e da etnologia, hoje vistas como aliadas da história. Além disso, houve uma série de novas traduções da obra do autor, especialmente para o inglês. Em posts futuros, vou apresentar um pouco desta produção mais recente sobre Heródoto, e farei referências detalhadas a elas. Mas encerro este post com a constatação de que esse é um outro elemento que explica o meu interesse nele: sua valorização de outros costumes e culturas, seu interesse por coisas que podem parecer sem muita relação com a narrativa central, em resumo, sua curiosidade mais geral, sua visão da história como podendo tratar de mais do que apenas um tópico especializado, são aspectos que correspondem muito com a visão que tenho da história, e motivos que tornam, mesmo hoje em dia, 2.500 anos após sua obra ter sido escrita, a leitura de Heródoto um grande prazer.

 

REFERÊNCIAS

FELDHERR, Andrew; HARDY, Grant. The Oxford History of Historical Writing: Volume 1: Beginnings to AD 600. Oxford: Oxford University Press, 2011.

MOMIGLIANO, Arnaldo. “A tradição herodoteana e tucidideana”. In: As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: EDUSC, 2004.

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