domingo, 21 de janeiro de 2024

Organizações de trabalhadores na Roma antiga

 Uma das vantagens da Internet é que podemos ter acesso a livros raros que, anteriormente, só seriam encontrados em bibliotecas especializadas. Um exemplo é este aqui, Étude historique sur les corporations professionnelles chez les Romains, de J-P. Waltzing, publicado em francês em 1895, que descobri a partir de referências em livros mais modernos; é só criar uma conta no Internet Archive e se pode ler todos os quatro volumes desta obra clássica. 

As corporações profissionais do título são associações de trabalhadores, as antecedentes das chamadas "guildas", na Idade Média. Se, à primeira vista, esse pode parecer um tema histórico maçante e pouco importante, o primeiro parágrafo da introdução do autor liga o seu estudo a tendências bem interessantes, e inclusive modernas, da história. Ele merece ser transcrito por inteiro: 

"Os historiadores romanos se ocuparam muito pouco com as classes populares: naquela sociedade baseada na escravidão, o trabalho era desprezado, os artesãos e pequenos comerciantes não tinham nenhuma influência sobre a direção dos assuntos públicos, e foram durante muito tempo excluídos do exército. Assim, nos monumentos literários, nós só encontramos, sobre sua vida privada e suas associações, algumas frases insignificantes e frequentemente obscuras para nós. O historiador romano que não tem batalhas nem cercos militares para contar, que não pode descrever as guerras civis, encontra "seu assunto ingrato e seu trabalho sem glória" [citação de Tácito]. Mesmo sob o Império, quando as corporações de trabalhadores se tornaram uma engrenagem importante da administração pública, os autores raramente se referem a elas. Nossa tarefa é reunir essas menções esparsas" (tradução minha).

O raciocínio de Waltzing pode ser extrapolado para outras sociedades escravistas mais modernas, como o Brasil colonial e imperial e os Estados Unidos até o século XIX. Mas, mais do que isso, ele insere sua obra em uma tentativa de fazer uma história das "classes populares", o que é uma das aspirações da história em geral pelo menos desde a década de 1960, com a chamada história "de baixo", sob inspiração marxista. A ideia é falar das populações esquecidas pela história dominante, por motivos econômicos, sociais, raciais ou outros: os escravos, as mulheres, os trabalhadores pobres etc. Mais recentemente, um dos termos para designar estas populações é "subalternos", o que tem levado a uma profusão de trabalhos chamados de estudos subalternos; para fechar o post voltando à obra inicial, temos aqui uma Bibliografia/Subalternos e Populares na Antiquidade, de um laboratório de História Antiga da USP, na qual a obra de Waltzing é a mais antiga citada, demonstrando tanto que esta ainda é uma referência como que vários trabalhos mais recentes têm sido publicados sobre estas questões.     

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Historiografia no século XXI

Este post marca um novo direcionamento deste blog, que acompanha uma série de mudanças ocorrendo na minha vida, tanto no campo pessoal quanto no profissional. A ideia é começar a discutir algumas questões relacionadas ao campo que é chamado de Historiografia ou Teoria da História. Em linhas muito gerais, esse campo discute as obras dos historiadores, ou seja, é uma espécie de história da história. Discussões muito interessantes têm ocorrido sobre vários aspectos teóricos da história e do ofício do historiador, e tentarei trazer um pouco dessas discussões para cá. 

O título de "Historiografia no século XXI" foi escolhido pensando, pelo menos, em três questões diferentes: 1) Como é fazer a historiografia do século XXI, por assim dizer, o que significa historicizar o nosso próprio tempo, a época na qual eu e outros autores vivemos, sofremos todas as influências culturais etc. Muitos autores têm discutido a chamada "história do tempo presente", e acho essa questão extremamente relevante, além de interessante; 2) A partir da ideia do filósofo italiano Benedetto Croce, de que toda história é história contemporânea, discutir como autores atuais ou do fim do século XX têm trabalhado com questões teóricas que vêm desde vários séculos anteriores, como a periodização da história, o caráter literário e narrativo da história, as influências de outras disciplinas, tanto no campo das humanidades como fora destas, para a escrita da história etc.; 3) Por fim, tentar discutir se, no contexto atual, marcado pela desvalorização das humanidades e do conhecimento acadêmico, pela dificuldade de leitura de textos longos e mais densos por grande parte das pessoas e pela expansão das ferramentas digitais, dentro e fora da academia, ainda faz sentido discutir questões teóricas de historiografia; ainda é possível se fazer historiografia no século XXI? 

Se conseguir pelo menos esboçar alguns elementos de cada um desses três itens, acho que já terá sido um exercício produtivo.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Adeus a meu pai


Eu tinha todos os motivos (ou pelo menos achava que tinha) para não gostar do meu pai. Ele falava alto, mesmo em lugares públicos, o que me incomodava. Ele nunca conseguia conversar muito tempo sobre algum assunto mais profundo, sempre encerrando a conversa com alguma frase genérica. Ele tinha um gosto, tanto em comida quanto em literatura, cinema, música etc., que sempre achei um tanto elitista e com o qual tinha dificuldade de me identificar. Ele muitas vezes exigia que as pessoas fizessem gestos em benefício dele sem que ele fizesse uma contrapartida, era teimoso, muitas vezes agressivo. No entanto, agora com sua doença e morte, eu percebo que era tudo uma racionalização, eram desculpas.

Na verdade, desde criança, ele marcou a minha vida de maneiras inesquecíveis: compartilhando comigo a paixão pelo futebol, mesmo que eu tenha escolhido um time diferente do dele; me levando de metrô de um final ao outro da linha, simplesmente como um passeio, o que eu adorava; comprando livros sobre assuntos variados que eu dizia gostar, mesmo que depois de um tempo eu deixasse de me interessar por eles. Uma das cenas mais emocionantes da literatura, para mim, é o fim da Ilíada, em que Pátroclo, o rei de Troia, vai até o campo dos adversários gregos para pedir o corpo de seu filho, Heitor, morto por Aquiles. A cena pode ser interpretada de inúmeros maneiras: como uma demonstração de respeito a tradições, aos mortos, como uma espécie de rendição dos troianos, ou como uma punição a Aquiles, que foi longe demais. Mas eu a interpreto, no momento atual, de uma forma mais singela: é uma representação da força do amor de um pai por seu filho, que é tão grande que supera até uma guerra.

Eu amava meu pai e não sei como vai ser viver em um mundo em que ele não existe mais, pois, no fundo, tudo o que eu fazia era para ele, de alguma forma. Para encerrar, cito um de seus autores favoritos, Shakespeare: “To die, to sleep. No more. And by a sleep to say we end. The heartache, and the thousand natural shocks. That flesh is heir to. ’tis a consummation. Devoutly to be wish’d. To die, to sleep— To sleep—perchance to dream. Ay, there’s the rub!”. Durma bem e sem sonhos, meu pai, enquanto existirem pessoas que se lembrem de você, você estará vivo nas memórias delas!

domingo, 16 de outubro de 2022

Bruno Latour


 

 

Morreu, aos 75 anos, Bruno Latour. Ele foi, dentre os autores que escreveram sobre ciência e tecnologia nos últimos tempos, sem dúvida o mais polêmico, e talvez mesmo o mais importante e influente. Com formação em filosofia, descendente de uma família de vinicultores da França, Latour logo mudou de trajetória, inclinando-se para a antropologia e a sociologia das ciências. No final da década de 1970, ele fez um estágio de dois anos num laboratório de bioquímica nos Estados Unidos, e desenvolveu uma nova metodologia que seria fundamental para o campo dos estudos sobre ciências: considerar os cientistas que trabalham em um laboratório como membros de uma determinada "tribo" e estudar seus costumes e práticas com as mesmas ferramentas da antropologia, especialmente a etnografia; além disso, analisar tanto os fatores internos como os externos (sociais, políticos etc.) que influenciam e são influenciados pela ciência. O livro decorrente dessa experiência, Vida de laboratório, escrito em conjunto com Steve Woolgar, publicado em 1979, é até hoje um clássico do campo e deu origem a todo um subcampo chamado de "histórias de laboratório".

Na década de 1980, Latour lançou outras obras fundamentais, tratando das controvérsias da época de Pasteur e escrevendo uma introdução aos estudos sobre ciência, Ciência em ação, que se tornou outro clássico do campo. Ao mesmo tempo, seu estilo iconoclasta e polêmico, com críticas diretas e agressivas a muitas figuras importantes do campo, como Canguilhem, Kuhn, Bachelard, e a pensadores anteriores, como Descartes, Durkheim e Kant, levou a que o próprio Latour fosse constantemente criticado, inclusive por antigos colegas do campo dos estudos sobre ciências. O seu desenvolvimento (juntamente com Michel Callon, seu grande amigo, e John Law) da chamada teoria do ator-rede ainda atraiu mais críticas a ele, pois a teoria rompe com a separação entre ciência e natureza e entre atores humanos e não-humanos, separação básica para quase todas as teorias da antropologia e da sociologia atuais (uma destas grandes críticas foi feita por David Bloor, um dos principais nomes da sociologia das ciências da década de 1970, e que escreveu um texto com o título de "Anti-Latour"). Um outro detalhe é que, bem dentro de uma tradição polêmica francesa, Latour respondia a todas essas críticas com bastante virulência.

 No final da década de 1990, Latour foi escolhido como um dos principais alvos da chamada "guerra das ciências", na qual um grupo de físicos escreveu artigos denunciando vários autores que tratavam de matemática e ciências em seus textos como "charlatães" e "impostores intelectuais". Latour foi colocado na mesma situação que autores como Lacan, Derrida e Julia Kristeva, por exemplo, o que fazia pouco sentido. Mesmo assim, ele respondeu duramente no prefácio de seu livro A esperança de Pandora, de 1999, onde partia, de uma maneira bastante irônica, da pergunta "se ele acreditava na verdade?" para expandir sua crítica à chamada modernidade como um todo, para ele caracterizada pela separação entre homem e natureza, corpo e mente, e defender uma nova sociologia que incorporasse a nautreza e os atores não-humanos, questões que ele já havia colocado em um livro de 1993, Nunca fomos modernos.

Ao longo da década de 2000, as publicações de Latour passaram a incorporar um outro elemento que considero muito interessante: as questões ecológicas e a crise climática. Ele reutilizou em vários de seus textos a expressão do planeta Terra como Gaia, criada pelo bioquímico inglês James Lovelock na década de 1970, além de utilizar outros termos para discutir essas questões, como a ideia de Antropoceno. Alguns viram nisso e em outros textos de Latour uma certa rendição diante da "guerra das ciências", com Latour passando a utilizar sem questionar elementos de ciências como a biologia e a meteorologia, embora eu ache essa uma crítica injusta a ele. Mas o mais marcante é que, em meio a tantas críticas, seu trabalho começou a obter grande reconhecimento também: em 2013, ele recebeu o Prêmio Holberg, na Noruega, o equivalente mais próximo do Prêmio Nobel para as humanidades; recebeu vários doutorados honoris causa e propostas para fazer leituras em várias universidades ao redor do mundo; e, por fim, em 2021, um ano antes de sua morte, recebeu o outro prêmio mais prestigioso para as humanidades, o Prêmio Kyoto, no Japão. Ao mesmo tempo, ele continuou produzindo livros e artigos, sempre incorporando alguma ideia nova ou diferente; seu último livro foi lançado em 2021, com o título de Onde estamos?, e trata do mundo pós-pandemia, que ele não viveu muito para ver. 

Considero que a morte dele não deve ser apenas lamentada, afinal ele conseguiu ter uma obra muito importante e influente e foi reconhecido em vida. E, agora, sua obra deixa de ser propriedade apenas de um autor e passa a contribuir para o conhecimento da humanidade, em um momento de grandes necessidades como o que estamos vivendo. Acho que não é exagero dizer que, após Thomas Kuhn, ele é o autor mais importante dos estudos sobre ciências no século XX (e XXI).

Gostaria de, a partir deste post, dar início a uma série de comentários mais detalhados sobre algumas das principais obras de Latour. Para começar, o clássico Laboratory Life, ainda hoje, mais de 40 anos após sua publicação, uma obra central do campo.


 P.S.: Não deixem de conferir o site www.brunolatour.fr, onde se encontram uma biografia, uma bibliografia, vários textos de seus artigos, além de várias imagens interessantes.

 

  

sábado, 7 de maio de 2022

O Antropoceno 1

 O Antropoceno é um conceito que começou a ser defendido por volta do ano 2000, baseado na ideia de que o ser humano, a partir de um determinado momento, se tornou um agente capaz de modificar a geologia e a natureza do planeta, que pode ser comparado às forças tectônicas e atmosféricas, por exemplo. A intenção de alguns dos proponentes do conceito é que ele se torne uma nova era geológica, substituindo, pelo menos em parte, o atual Holoceno (que se iniciou há mais ou menos 12.000 anos, com o fim da era glacial mais recente). Já foi feita uma proposta para que o Antropoceno seja aceito pela nomenclatura geológica oficial, mas isso ainda está em estudos. O primeiro autor a usar com mais frequência o termo e tentar criar uma definição mais precisa do Antropoceno foi o cientista atmosférico holandês Paul J. Crutzen, com a publicação de dois artigos bem sintéticos em 2000 e 2002. Embora o campo de atuação de Crutzen fosse as ciências exatas, ele já vinha trabalhando há algum tempo com as consequências sociais e econômicas dos fenômenos que estudava, pois foi um dos ganhadores do Nobel de Química, em 1995, pelo seu papel na descoberta do buraco de ozônio na atmosfera causado pela atividade humana. Nesses primeiros artigos, Crutzen também citava pelo menos uma referência do campo da história, o historiador estadunidense J. R. McNeill, autor de uma história ambiental do século XX, mostrando uma disposição para aumentar o alcance e a análise do conceito. Nos próximos posts, vou apresentar as polêmicas existentes sobre o momento de início e o próprio nome do Antropoceno.

Referências:

CRUTZEN, Paul J.; STOERMER, Eugene F. The "Anthropocene". Global Change Newsletter, 41, Estocolmo: Royal Swedish Academy of Sciences, maio 2000, pp. 17-18.

CRUTZEN, Paul. Geology of Mankind: The Anthropocene. Nature, 415 (jan. 2002)

McNEILL, J. R. Something New Under the Sun: An Environmental History of the 20th-Century World. New York: Norton, 2000.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Heródoto e os inícios da história


 

 

Tenho voltado a ler um de meus autores favoritos, tanto por razões históricas como por outras que ficarão mais claras ao fim deste post: o grego Heródoto. Ele é considerado o primeiro historiador; embora, hoje em dia, se aceite que o mais correto é dizer que ele foi o primeiro autor conhecido que falou de história cuja obra sobreviveu. Culturas anteriores à Grécia, como o Egito e a Mesopotâmia, também produziram obras com um caráter histórico, ou seja, que falavam do passado, mas estas geralmente não estavam ligadas a um autor individual (FELDHERR; HARDY, 2011). Ao mesmo tempo, estas, desde o início, foram usadas pelos governantes como forma de legitimação (como os anais assírios). Embora se possa dizer que a obra de Heródoto cumpre um pouco esta função de legitimação da Grécia clássica em seu confronto contra a Pérsia, veremos que a questão é um pouco mais complexa e que talvez uma de suas maiores qualidades seja exatamente não se reduzir a este papel.

Por um lado, pode-se dizer que Heródoto foi o autor mais importante da historiografia, pois o próprio termo história, que é utilizado até hoje em todas as línguas indo-europeias, vem do título de sua obra, que pode ser traduzido como “pesquisas” ou “enquetes”. Então, em um sentido literal, Heródoto é realmente o “pai da História”, como Cícero escreveu no século I a.C. No entanto, o modelo de história que ele defendia era bem diferente daquele que acabou sendo praticado pela grande maioria dos historiadores que vieram depois dele, que se basearam muito mais em um outro historiador grego, Tucídides, uma geração mais jovem do que Heródoto, que estabeleceu os elementos centrais da historiografia até o século XX: o destaque para a história política, militar, diplomática e econômica, a concentração nos governantes, a busca e a crítica de documentos escritos, de preferência. Ao contrário, Heródoto, embora também estivesse narrando uma guerra, fazia inúmeras digressões sobre assuntos não relevantes diretamente para isso, dava preferência ao testemunho sobre o documento (quase tudo o que ele contava vinha sempre do que ouviu de alguma outra pessoa), mesmo quando esse testemunho parecia absurdo ou fantasioso, como no caso de lendas sobre formigas devoradoras de homens. Ele também se interessava por inúmeras outras questões que, no modelo de Tucídides, não seriam assuntos da história, como, por exemplo, os costumes sexuais de determinadas tribos ou os crocodilos do Egito; ele estaria mais próximo de um “contador de estórias” do que de um historiador, na visão atual (MOMIGLIANO, 2004). Por isso, o próprio Tucídides foi o primeiro a criticar Heródoto e apontar que ele também seria o “pai das mentiras”.

Até a primeira metade do século XX, a história concentrada nos “grandes homens”, nos reis, nas guerras, era dominante, o que não quer dizer que era o único estilo a ser escrito, mas era o que tinha maior visibilidade. Os franceses da Escola dos Annales lançaram uma crítica, a partir dos anos 1920, entre outras coisas, exatamente à essa história política e militar, baseada apenas nos supostos “acontecimentos” (histoire évenementielle, para usar o termo de Lucien Febvre) e em documentos escritos. Contra ela, reivindicaram uma espécie de “história total”, que tratasse de vários outros domínios, especialmente nos campos social e cultural, e que se interessasse por outras questões, além das guerras e da política. Como uma consequência lateral disso, pois nenhum dos historiadores do grupo dos Annales o citam diretamente, houve uma reabilitação de Heródoto, agora não mais o crédulo, ingênuo e “contador de estórias”, mas sim o Heródoto interessado em questões sociais e de costumes, que buscava fontes, sempre que possível, nas próprias culturas das quais falava, e, principalmente, o Heródoto que, ao contrário de muitos narradores de guerras, não tratava o adversário apenas como bárbaro que devia ser exterminado; o que também movia Heródoto, como ele diz em um dos primeiros parágrafos de sua obra, era tentar entender como o império persa surgiu, se tornou tão forte e uma ameaça a Grécia, e como, posteriormente, acabou derrotado, embora fosse muito mais poderoso militarmente.

Dessa maneira, a partir da segunda metade do século XX houve uma grande produção de obras sobre Heródoto, procurando aproximá-lo, do mesmo modo que ocorreu com a história em geral, da antropologia e da etnologia, hoje vistas como aliadas da história. Além disso, houve uma série de novas traduções da obra do autor, especialmente para o inglês. Em posts futuros, vou apresentar um pouco desta produção mais recente sobre Heródoto, e farei referências detalhadas a elas. Mas encerro este post com a constatação de que esse é um outro elemento que explica o meu interesse nele: sua valorização de outros costumes e culturas, seu interesse por coisas que podem parecer sem muita relação com a narrativa central, em resumo, sua curiosidade mais geral, sua visão da história como podendo tratar de mais do que apenas um tópico especializado, são aspectos que correspondem muito com a visão que tenho da história, e motivos que tornam, mesmo hoje em dia, 2.500 anos após sua obra ter sido escrita, a leitura de Heródoto um grande prazer.

 

REFERÊNCIAS

FELDHERR, Andrew; HARDY, Grant. The Oxford History of Historical Writing: Volume 1: Beginnings to AD 600. Oxford: Oxford University Press, 2011.

MOMIGLIANO, Arnaldo. “A tradição herodoteana e tucidideana”. In: As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: EDUSC, 2004.

domingo, 26 de dezembro de 2021

A domesticação dos gatos

Tenho lido sobre a domesticação dos gatos, o que envolve vários temas que me interessam bastante, como os próprios gatos, história ambiental (a partir das relações entre homens e animais), história antiga e arqueologia. Me baseio neste artigo aqui, publicado em 2009. 

Pesquisas genéticas mostraram que todas as espécies atuais de gatos domésticos descendem de uma mesma espécie de gatos selvagens, o gato selvagem africano, que, na verdade, é do Norte da África e do Oriente Médio. Existem outras quatro espécies de gatos selvagens em diferentes locais do mundo (uma no sul da África, uma na Europa, uma na China e uma na Ásia Central), mas esses gatos selvagens não participaram do processo de domesticação do gato, segundo a opinião da maioria dos especialistas. Geneticamente e fisicamente, os gatos domésticos atuais são praticamente indistinguíveis dos selvagens, como mostra essa foto encantadora de uma ninhada de gatos selvagens africanos:



Os especialistas achavam, até bem recentemente, que os gatos tinham sido domesticados no Egito Antigo, primeiro lugar em que eles foram retratados em desenhos e mencionados em textos. No entanto, uma descoberta arqueológica de 2004 mudou essa percepção, quando o esqueleto de um gato foi encontrado ao lado de um esqueleto humano adulto na ilha de Chipre, ambos datados como tendo cerca de 9.500 anos atrás (ou 7.500 a.C.). Como em Chipre não existiam populações de gatos selvagens, o gato deve ter sido trazido por navio do continente, provavelmente do Oriente Próximo, região mais próxima de Chipre. A partir disso, os arqueólogos concluíram que a domesticação dos gatos deve ter sido um processo que acompanhou os inícios da agricultura, no mesmo Oriente Próximo (mais especificamente, na região denominada "Crescente Fértil" pelo arqueólogo estadunidense James Breasted). À medida em que os humanos começaram a estocar grande quantidade de alimentos em um único local (como silos e depósitos), isto atraiu uma série de espécies selvagens, como os ratos. Os gatos selvagens provavelmente se aproximaram dos humanos por causa da facilidade de consumir roedores como os ratos, e, pelo mesmo motivo, foram logo valorizados pelos agricultores, que passaram a usá-los para controle de pragas; com o tempo, outras relações foram desenvolvidas entre as duas espécies.

No Egito, os gatos passaram a ser tão valorizados que, na época do Novo Reino, a partir de 1.000 a.C., houve o culto de uma deusa ligada à fertilidade, Bastet, cuja imagem era de uma gata, e que tinha um santuário dedicado a ela na cidade de Bubastis. 


 

Os egípcios ainda tentaram proibir a exportação dos gatos, mas isso não funcionou, pois, na época do Império Romano, já eram encontrados vestígios de gatos por quase toda a Europa. Foi da Europa que eles vieram para as Américas e para a Austrália, onde superaram as espécies de gatos selvagens locais. E cada vez mais foi se desenvolvendo uma relação que é benéfica para os dois lados, pois, como diz um provérbio indiano, "Deus criou o gato para que o ser humano pudesse acariciar o tigre".   

Organizações de trabalhadores na Roma antiga

 Uma das vantagens da Internet é que podemos ter acesso a livros raros que, anteriormente, só seriam encontrados em bibliotecas especializad...